sábado, 24 de setembro de 2011

Conto: Em nome do pai

                                   Tela de Rene Magritte

Em nome do pai

“Seu pai morreu alguns dias após seu nascimento”. Essa era a única informação que eu recebia para a minha insistente curiosidade sobre o meu pai. Minha mãe não dizia mais nada. Aliás, minha mãe há muito já não dizia ou sentia coisa alguma. Tudo que expressava era uma certa mágoa, visível através de sua fisionomia pesada. Não me recordo de vê-la sorrindo. Ela era apenas um corpo vagando pelo mundo. Uma alma perdida em seus labirintos mentais, sendo perseguida por um Minotauro que se recusa a dar o golpe final e que estendia a agonia da espera da morte para cada corredor e cada curva.


Nossos familiares... eu não os conhecia. Mudamos tantas vezes que perdi, desde a minha infância, qualquer referência local. Éramos tão fugazes no espaço, como o tempo é para a vida. Vizinhos... não passavam mais que dois anos de contato. Minhas raízes foram fragmentadas pelo caminho.


É certo que não conheci meu pai, mas todas as pessoas, com as quais tive a oportunidade de conversar, conheceram as histórias do grande pesquisador que morreu em uma expedição na floresta amazônica, ou do capitão da aeronáutica que perdeu a vida em um teste de um caça ultra-secreto ou tantas outras aventuras que a minha imaginação podia me dar. Certo dia, um colega me disse: “seu pai era o Super-homem”. O pobrezinho não sabia que nenhum herói era capaz de chegar perto de meu pai. Afinal, ele era tudo de melhor que existia em todos eles.


O tempo passou e a minha curiosidade sobre meu pai aumentou na mesma proporção em que surgiam suas imbatíveis aventuras. Já estava com dezessete anos quando ganhei um conjunto de roupa social.


Na primeira vez em que vesti essa roupa, tão masculina e adulta, fiquei muito tempo observando-me pelo espelho. Aquela imagem de homem, de um certo modo, me intrigava, a não ser pela marca de nascença em forma de lua minguante no pescoço, era quase um desconhecido que estava à minha frente. Nesse instante, minha mãe passou pela porta de meu quarto e de relance se assustou com o que vira e, inconscientemente, disse o nome de meu pai. Lancei meu olhar para aquela mulher, que em prantos e em desespero tentava abafar a palavra pronunciada. Era tarde demais. Caminhei em sua direção, agarrei-a pelos braços e balançando em desespero, pedi que, de uma vez por todas, falasse sobre meu pai.


Ela tentou escapar, mas não teve força e sem saída disse que, ao me ver com estas roupas, viu em mim a imagem de meu pai. Essas as últimas palavras que ouvi minha mãe pronunciar.


Fui a uma loja especializada em fotografia. Pedi que tirassem uma foto minha com as roupas que havia ganhado e que fosse produzido um efeito de envelhecimento. O produto final me surpreendeu e emocionou; tinha enfim uma foto de meu pai.


Procurei os jornais das cidades onde havia morado e pedi que publicassem a foto, pedindo informações sobre a história daquele homem. Foram meses de espera até que um dia recebi uma carta, sem remetente, que simplesmente dizia que meu pai estava vivo e informava o endereço onde poderia encontrá-lo. Nesse instante, eu era uma mistura de raiva e felicidade. Mostrei para minha mãe, não entendia o porquê da mentira, mas ela nada disse, nada fez e nada esboçou.


Viajei no dia seguinte para a cidade à qual a carta se referia. Com dificuldade encontrei o bairro. Era na periferia. O endereço era de uma casa verde, bem conservada, onde pareciam morar pessoas mais afortunadas que a maioria dos moradores. Detive-me na entrada. Meu coração estava disparado e mil coisas se passavam em minha cabeça. Tomei coragem e toquei a campanhia.


Em pouco tempo a porta se abriu e uma mulher apareceu. Ela, de súbito, se assustou ao olhar para mim. Comecei a pensar que era a mulher atual de meu pai e que talvez ela o tivesse afastado de minha mãe e posteriormente de mim. Uma raiva começou a arder-me por dentro.


Analisei cada centímetro dessa mulher, do dedão do pé ao último fio de cabelo.Ela era muito bonita. Encorpada, postura altiva, pele bronzeada, muito diferente de minha mãe. Só podia ser isso – pensei – ela roubou meu pai de nossa família.
Ela, tentando esconder o espanto, perguntou o que eu desejava. Não me contive e disse que queria falar com meu pai.


Ela fingiu não entender o que eu dizia. Energicamente falei para deixar de ser dissimulada e que a reação que ela teve, quando me viu, não deixava dúvida de que ela sabia muito bem quem eu era e do que eu estava falando. Vendo que não conseguiria dissuadir-me, abriu a porta e pediu que eu entrasse.


Dentro, a casa se mostrava, ainda mais, ser um corpo estranho naquele bairro de periferia. Cômodos bem mobiliados e bem acabados. A mulher pediu que eu me sentasse em um sofá, por sinal muito confortável, e sentou-se em uma poltrona em frente. Sua beleza chamava atenção, mas quanto mais me encantava, mais a minha raiva crescia.
Ela perguntou-me o que eu sabia sobre meu pai. Respondi que crescera ouvindo minha mãe dizer que havia morrido, mas que recebera uma carta que me levara até essa casa. Perguntei se fora por causa dela que meu pai abandonara a família. Ela respondeu que sim. Comecei a chorar.


A imagem de meu herói foi quebrada e, naquele instante, dividi a culpa de todo o meu sofrimento entre duas mulheres que me deixaram tanto tempo sem pai: uma por volúpia e a outra, minha mãe, por mentira.


Ao ver meu pranto, a mulher sentou-se ao meu lado, me enlaçou em um maternal abraço e, lendo meus pensamentos, disse que minha mãe não havia mentido, que na realidade meu pai morrera dias após meu nascimento.
Ela me consolou, ajudou-me a me recompor. Ofereceu algo para beber, o que recusei. Pedi que ela me deixasse ir embora, o que ela fez depois de ter certeza de que me acalmara.


Ao me despedir, a mulher pediu perdão por tudo que ela pudesse ter causado. Nada respondi. O vento soprou e fez dançar os longos cabelos da mulher. Uma pequena marca em forma de lua minguante em seu pescoço ficou exposta. Ganhei a rua e fui embora. Em meu luto paterno nunca mais pronunciei o nome de meu pai.

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